Em certos processos judiciais, para fazer prova de alguma alegação, as partes ou os magistrados necessitam do acesso a dados pessoais e privados armazenados online em provedores que, muitas vezes, se encontram fora do Brasil.
Nesses casos, geralmente se busca ter acesso a dados cadastrais, a imagens, vídeos e áudios em redes sociais, e-mails ou mesmo em grupos privados. Diante disso,é comum que sobrevenha a seguinte dúvida: a quem devem ser endereçados os pedidos de acesso a tais dados, considerando que os provedores desses aplicativos de internet estariam sediados em jurisdição estrangeira?
A fim de evitar impasses como esse, o Brasil firmou com os Estados Unidos o Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal (Mutual Legal Assistance Treaty, MLAT), recepcionado pelo Decreto nº 3.810/2001, a fim de “facilitar a execução das tarefas das autoridades responsáveis pelo cumprimento da lei de ambos os países, na investigação, inquérito, ação penal e prevenção do crime por meio de cooperação e assistência judiciária mútua em matéria penal”.
Essa ajuda se trata, em suma, do auxílio direto, medida em que a solicitação deve ser promovida aos Estados Unidos por meio da autoridade central, que no caso do Brasil é o Ministério da Justiça – ao lado disso, as cartas rogatórias se encontram como outro instrumento de cooperação internacional que pode ser empregado em boa parte desses casos.
Embora se pudesse cogitar que com esse acordo o tema restaria pacificado (ao menos com relação aos Estados Unidos), não é o que ocorre, pois na praxe do Judiciário nacional a aplicação desse acordo não é sempre observada, além de ainda haver diversas dúvidas quanto aos limites jurisdicionais nos casos em que os provedores se encontram sediados no exterior.
Logo, a fim de consolidaruma posição sobre a cooperação internacional quanto ao acesso de dados, em novembro de 2017, a Federação das Associações das empresas de Tecnologia da Informação (Assespro) ajuizou ação declaratória de constitucionalidade (ADC 51), de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, por meio da qual, em resumo, visa assegurar a aplicabilidade do referido decreto, assim comonos artigos237, II, do Código de Processo Civil e780 e 783 do Código de Processo Penal (todos os três basicamente sobre a expedição de carta rogatória), de modo que os magistrados utilizassem esses procedimentos ao invés de determinarem diretamente por meio de uma decisão na jurisdição brasileira.
Com essa ação perante o Supremo Tribunal Federal,em suma,pretende-se firmar um posicionamento sobre a “aplicabilidade dos procedimentos de cooperação internacional (…) para a obtenção de conteúdo de comunicação privada sob controle de provedores de aplicativos de Internet, estabelecidos no exterior”.
Como dito, uma parte considerável dos tribunais brasileiros vem decidindo por não aplicar o disposto no decreto, nem pelo envio de carta rogatória às empresas localizadas no exterior, e o fundamento empregado para tanto é, em resumo, o resguardo da soberania nacional. Assim, em geral, os magistrados brasileiros costumam entender que as afiliadas/subsidiárias (das empresas estrangeiras) estabelecidas no Brasil são responsáveis por responder às requisições judiciais e que o desrespeito a isso representa violação à soberania nacional e uma afronta ao Poder Judiciário, passível de multas, bloqueio e até mesmo prisão – há um caso relatado de pedido de prisão de executivos da empresa que não cumpriu com a determinação judicial.
De toda sorte, cabe consignar que o argumento de violação à soberania nacional não parece ser suficiente para, por si só, afastar a incidência de uma norma, visto que a legislação nasce com presunção de constitucionalidade. Assim, apenas poderia ser considerada inconstitucional acaso declarada pelas vias cabíveis.
No mais, nos Estados Unidos, a legislação veda aos provedores de serviços de comunicações eletrônicas ou de serviço de computação remota a disposição de dados de comunicação a autoridades de outros países (salvo em casos de crimes mais graves, como pedofilia, ameaça de vida e sequestro).
O conflito em questão pode ser muito bem resumido nos termos propostos pelo Instituto de Referência em Internet e Sociedade:
“A quebra do sigilo telemático em aplicações da Internet tem levantado debates em função da recusa de empresas estrangeiras a entregar conteúdo informacional de seus usuários. Por um lado, elas requerem a observância dos tratados bilaterais de cooperação jurídica entre Brasil e os países onde se encontram suas sedes, notadamente os Estados Unidos, e/ou naqueles em que os dados estão armazenados. Por outro, autoridades brasileiras questionam a efetividade dessas regras e sua aplicabilidade no ambiente multiterritorial e transfronteiriço da Internet. As condutas unilaterais, por sua vez, têm promovido cenário de bloqueios de aplicações no Brasil, arbitramento de elevadas multas e até mesmo a prisão de representantes das multinacionais no país”.
Sobre a legislação aplicável, cabe ressaltar o que consta do artigo 11 do Marco Civil da Internet: “Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros”, especialmente àquelas empresas que possuem um estabelecimento no Brasil (art. 11, § 2o).
Contudo, essa norma não é suficiente para resolver a questão. Sempre que nos deparamos com causas envolvendo aspectos do direito digital, a jurisdição representa um tema um tanto quanto complexo, notadamente em razão do caráter global da internet, cujas fronteiras artificiais criadas pelos Estados e ordenamentos jurídicos muitas vezes não são suficientes para solucionar as controvérsias quanto aos limites das ações do Poder Judiciário em cada localidade.
Ademais, as normas dos outros países podem estabelecer, da mesma forma, a competência destes, gerando assim um conflito de jurisdição que deverá ser resolvido conforme as peculiaridades do caso concreto.Diante disso, na análise da ADC proposta devem ser observados diversos aspectos que, juntos, poderão enfim definir os limites e alcances da jurisdição nacional num contexto tecnológico.
O que se pretende com este breve artigo é apresentar o panorama atual e consignar que o posicionamento do Poder Judiciário não é pacífico quando se trata da forma para a obtenção de dados (conversas, imagens etc.) de aplicações de internet, como Instagram, WhatsApp e Facebook. Este, inclusive, já foi admitido como amicus curiae na ADC 51 e participou de audiência de mediação para debater a ação, ocorrida em 04 de abril de 2018, ao lado da Assesproe do Yahoo.
Já o promotor de Justiça e coordenador da Comissão de Proteção de Dados Pessoais do Ministério Público do Distrito Federal, Frederico Ceroy, acredita que “exigir o uso do MLAT para alvos nacionais vai enfraquecer o marco regulatório, abrir a porta para um movimento regulatório pesado e colocar em xeque todos os avanços do Marco Civil da internet, inclusive liberdade de expressão.”
Cabe, agora, aguardarmos os próximos andamentos da demanda, assim como nos atentarmos às decisões corriqueiras nas instâncias inferiores, a fim de averiguar se a própria propositura da ação já trouxe algum efeito nos tribunais quanto ao uso das ferramentas de cooperação internacional disponíveis.
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